quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Notas de um macaco velho

Jack - Foi tanto o entusiasmo organizando este concurso literário que fiquei empolgado e acabei escrevendo um conto, aliás, ainda estou escrevendo...

Eddy - Olhe...! Você não pode participar deste concurso! Como organizador...

Jack - Já sei, já sei... como na época do torneio de xadrez... só fiquei olhando.

Eddy - Mas você pode publicar seu conto fora do concurso; feito assim... uma coluna literária... sacou?

Jack - Pode crer! Desta gostei... um conto por mês... algo assim; parafraseando Bukowski poderia chama-las, deixa ver... Notas de um macaco velho...

Eddy - Pronto.



UMA NOITE DE CHUVA

O bar estava quase vazio. Era uma quarta feira em meados de maio; tinha acabado de chover e na rua só andava um cachorro molhado; logo que o garçom deu as costas para a entrada, o pulguento foi esconder-se por baixo de um banco de madeira, que estava em um cantinho seco e escuro; perfeito para passar despercebido e longe da chuva. Na mesa redonda, por baixo da luminária de papel colorido que Leon construiu, estavam as irmãs argentinas Celeste e Adelaide, jogando generala aos dados com três outros; uma mulher gorda que soltava uns gritos de euforia quando realizava uma boa pontuação e dois homens, um deles com um sorriso sinistro estampado na cara, que tomava rum com “umas gotinhas de limão”. Mais longe possível do olhar alheio, na mesinha atrás do tronco de coqueiro que sustinha a palhoça naquele canto, trocando beijos incandescentes e aliviando os lábios de tanto calor tomando uma geladinha: um gringo recém-chegado em Pipa e aquela linda criatura morena de olhos verdes que trabalhava na cigarreira do seu Zé do Pé. Os dois tinham acabado de conhecer-se à noite precedente na barraca da baiana, na praia, e estavam agarrados um no outro o tempo inteiro. Quando o sortudo alemão levantou para ir ao banheiro, naquele ritual vai-e-vem de quem toma mais de uma cerveja, passou no meu campo visual e deu para ver no rosto dele a expressão de felizardo que o acontecimento merecia. No meio da sala, por baixo das lâmpadas mais fortes, o Paulista e Lélio estavam jogando xadrez, trocando olhares ferozes na mútua tentativa de aplicar estratégias psicológicas. Atrás do balcão, Eusébio, com eloqüente mímica, descrevia para um italiano de bigodes um golaço de Maradona na época do Nápoles. Xavier e Viola tinham já desmontado a banquinha onde costumavam expor a própria mercadoria; sentados nos bancos no fim do balcão, apesar de estar conversando entre eles, não puderam evitar de olhar para as contidas acrobacias de Eusébio. Eu, de fone de ouvido na cozinha, cuidando da seleção musical, sorria ao ver, através da janelinha que dava na sala, a reação do cachorro ao perceber o cheiro das lingüiças postas na grelha pelo cozinheiro. O focinho do cachorro não conseguia parar, fungando no ar as menores partículas do irresistível cheiro. Pelo resto, o bicho estava imóvel. Até os olhos mantinha fechados.

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Recomeçou a chover e a noite transcorria lentamente. Em um momento entraram dois pescadores nativos, Joca e Damião: sentaram a uma mesa e pediram logo uma cerveja e dois espetinhos de coração. Rubinho, o garçom, perguntou: "Tem preferência pela cerveja?" "Pode trazer a mais gelada, meu irmão" replicou o mais alegre dos dois, Damião, ajeitando-se no banquinho para apoiar-se ao tronco de coqueiro e esticar as pernas. O garçom veio até a cozinha para fazer o pedido e anunciou solene: "Dez e meia da noite... com esta chuva, hoje não vem mais ninguém". Vã esperança dele de ir cedo pra cama, como veremos. O Paulista meteu só a cabeça dentro da cozinha para desafiar-me no xadrez. Botei um vídeo dum show ao vivo de B.B.King para assistir na tv e saí da cozinha. Passando pelo bar, aproveitei para tomar uma cachacinha e esquentar o esqueleto numa noite fria como aquela. O Paulista me viu e quis tomar uma dose também; depois fomos sentar para jogar à mesa estratégica, de onde, pelo particular visual amplo, dava pra manter todo o local sob controle. Tinha acabado de sentar, quando um carro chegou e parou bem em frente à entrada do bar; a porta abriu e um cara desceu rapidamente do carro e foi andando em direção ao balcão. Eusébio, que naquela época achava uma ofensa pessoal se alguém estacionasse na frente do bar, lançou-me um olhar interrogativo, como para dizer: “mas quem é este doido?”, porém não falou nada e ficou fitando o recém-chegado. Este, sem nem sentar, pediu uma dose que tomou num gole, depois perguntou pelo banheiro e foi lá. Quando voltou, sentou num banco ao balcão e ficou estudando o cardápio por um pedaço. "Eu quero... quero... um espaguete à bolonhesa" enfim disse, "pode caprichar que hoje só comi um cachorro-quente na rodoviária de Recife, meu irmão..." "Você disse Recife, mas não tem sotaque de pernambucano..." começou Eusébio. "Pois é, meu irmão; sou carioca... mas moro em Fortaleza" replicou o homem prontamente. "Uma Bolonhesa, bem servida" disse Eusébio na janelinha da cozinha.


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Meio distraído, à mesa de xadrez, acabei perdendo uma torre e um peão em troca de um cavalo; quando chegamos no final, estava em evidente desvantagem, destinado a sucumbir aos ataques adversários. Mas o Paulista também perdeu a concentração e deixou que eu desse um xeque nele, atacando no mesmo tempo o rei e a única torre presente no tabuleiro. Depois ficou um pouco mais fácil e, sacrificando o meu cavalo no ultimo peão dele, a partida terminou empatada. Parou de chover por uns quinze minutos e logo Eusébio aproveitou para pedir ao dono do carro, que tinha já acabado de jantar fazia um tempo, para estacioná-lo um pouco mais prá lá e deixar livre a passagem. "Desculpe, meu irmão... mas já parou de chover e tirando o seu carro fica mais legal, sabe... para o pessoal entrar e sair..." O carioca olhou para Eusébio.como se não tivesse entendido; ficou por uns segundos com uma cara de idiota, depois fez uma careta e levantou do banco agilmente. Com sete longos passos chegou à porta do carro, subiu, ligou o motor e partiu. Assim que o carro saiu, entrou.Virgilio; foi até a mesinha preferida dele e sentou-se. "Tem picanha, che?" perguntou para Eusébio, "dá-me uma cerveja bem gelada" "Naturalmente tem picanha" respondeu este, "argentina, che... puríssima tapa de quadril." "Para um ou para dois?".indagou, para poder passar o pedido à cozinha, e sem esperar a resposta acrescentou, dando a volta ao balcão e ficando mais perto: "Hoje não esperou a meia-noite para fechar a pizzaria". "Também... só rolou chuva" disse Virgilio, e respondendo: "Picanha para um, com bastante batata, pouco arroz... salada sim", e indicando a garrafa: "Toma-te um copo comigo, se não vai ficar quente". Eusébio deu três passos e, na porta da cozinha, anunciou, escandindo as palavras: "Picanha para um, com bastante batata, pra Virgilio... pouco arroz". "Beleza, brother... Picanha para um, no capricho" confirmou o cozinheiro e já estava abrindo a geladeira dando uma meia-volta num pé só. Voltando nos próprios passos, Eusébio deu de cara com Rocco, um barrilete que acabara de chegar e já estava entrando atrás do balcão para surrupiar um refrigerante. Rocco, amigo de Eusébio, estava hospedado em casa de Leon e trazia um recado: "Leon não vai poder vir" disse logo, "está brigando com a maquina da fumaça da boate e, por enquanto, está apanhando..." concluiu. Eusébio sorriu... e eu também, claro.


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Recomeçou a chover. O homem do carro entrou apressado no bar e voltou a sentar-se no mesmo banco onde estava antes. Pediu mais uma caipirinha e caiu de novo na conversa com o italiano de bigode, um tal Franco, que naquela época morava em João Pessoa, mas que estava querendo construir uma casa em Pipa. O show de B.B.King tinha acabado e eu estava de novo trocando discos, mas logo na MTV anunciaram o show de Nirvana acústico e assim comutei naquele canal. Não se tratava de novidade, claro, mas um show desse peso vale a pena ver de novo, como dizem na tv. Paulo e a doida C. desceram correndo a rua da gameleira gritando, abrigando-se da chuva cada um dentro de um grande saco de lixo preto. Logo foram para o balcão onde tomaram uma dose de cachaça dum gole só, “para carburar”. Depois pediram uma cerveja e começaram a conversar. Ironicamente, com a notória eloqüência que o distingue, Paulo começou a falar com Xavier, sentado de um lado, enquanto a doida C., que conhecia o italiano, que sentara do outro lado do balcão, pediu um cigarro para ele e perguntou noticias de não sei quem, dando as costas para o amigo pintor pelo tempo todo, quase. Todavia os dois continuaram tomando da mesma garrafa e quando foi hora de pagar dividiram com equidade.


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Era quase uma hora da manha quando a chuva interrompeu de novo; muitos aproveitaram para ir embora. Virgilio levantou-se, como se tivesse lembrado alguma coisa importante, e disse: "Vamo-nos, Enano... hasta mi casa..." Eusébio chamou a minha atenção com um olhar significativo. Quando fomos mais perto, ele comunicou: "Vou até a casa de Virgilio. Se não quedo dormindo na frente da tv, volto de aqui a pouco". "Beleza!", repliquei lacônico, dirigindo-me para a pia do balcão, onde estavam um bocadinho de copos para lavar. Eusébio pegou dois cigarros de uma carteira aberta, que sempre ficava na gaveta do caixa, e foi embora com o chileno. Rocco foi atrás deles, segurando na mão um chori-pan, saboroso sanduíche com lingüiças na grelha e chimichurri, molho picante. O cachorro acordou e foi atrás de Rocco, ou, mais propriamente, do cheiro da lingüiça, na esperança de ganhar um pedaço... pelo menos do pão. A turma dos dados pediu a conta, pagou e foi embora com medo que recomeçasse a chover. Um dos pescadores levantou da mesa, veio até o balcão, pediu a conta, o desconto, pagou e foi embora. O amigo, já pronto para a cama, segui-o como uma sombra. Apaguei a metade das luminárias da sala e o garçom começou a arrumar tudo para fechar. O som ficou bem baixinho para acompanhar este final de expediente. Xavier e a mulher despediram-se e foram embora. Paulo pegou carona com eles e foi-se também. A esta altura da madrugada apareceu Leon. Tentando consertar o aparelho tinha fumado todos os cigarros; à procura de cigarro mesmo foi que ele caminhou até o bar naquela hora. Logo foi para a cozinha buscar um maço novo. A doida C. foi atrás dele, falando qualquer coisa. O carioca pediu a conta, mas na hora de puxar o dinheiro do bolso lembrou de ter deixado a carteira no carro. Levantou do banquinho com um salto e disse: "Volto já." e saiu de novo quase correndo. O italiano bocejou duas vezes, estirando os braços para cima; sacou duas notas de dez do bolso e colocou por baixo do copo vazio no balcão. "O resto fica de credito para a próxima vez" disse, e já se encaminhando: "Boa-noite". Fazendo zapping na tv, Leon encontrou "Blade runner" que estava para começar na sessão corujão. O cozinheiro mexeu um pouco na brasa para reavivá-la e colocou uns bifes para assar, para todo mundo comer alguma coisa antes de ir embora. A menina da cigarreira e o alemão também pediram a conta e abraçados foram embora. O cozinheiro ficou para a ceia. O garçom desligou todas as luzes e deixou acesa só aquela do balcão; enfim foi embora, carregando o saco do lixo até a esquina. Ficamos assistindo ao filme até quase amanhecer. Ainda apareceu o barrilete Rocco, que sentou conosco e comeu um pedaço de carne dura e fria que tinha sobrado... O homem do carro, que foi buscar a carteira para pagar a conta, não voltou àquela noite nem nunca mais. Mas... se ele vacilar e aparecer de novo na Pipa... tenho certeza que Eusébio, que é fisionomista, ainda reconhece-o. Pode crer.

Publiquei este conto pela primeira vez em 2004 no web site www.eca13.org em ocasião do 1º Concurso Literário "Memórias de Pipa", ao qual, como organizador, não pude participar.

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