sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

A Ilha da Pipa

A morfologia geográfica da costa da região de Tibau do Sul mudou muito nos últimos séculos. Baste pensar que os nativos meus coetâneos lembram que, quando eram crianças, a praia se estendia compacta uns dois metros ou mais acima do nível atual¹ até os arrecifes, e que o ancoradouro dos barcos dos pescadores estava na praia do Curral.
Pessoalmente lembro que no caminho para a baia dos Golfinhos ainda uns 15 anos atrás existia um promontório que fechava a passagem na maré alta. A persistência da chuva e a violência das ondas do mar fizeram a própria parte num processo erosivo lento e constante. Com o passar do tempo uma grande pedra com uns cinco metros de altura ficou à vista. Já a passagem na maré alta não estava mais interditada, pois com cuidado dava para transitar entre a pedra e a falesia. Passou mais tempo e um dia a grande pedra sucumbiu à força das ondas e a metade superior partiu-se em muitos pedaços que despencaram para baixo e foram se acomodando ao redor da parte maior, que ficou no lugar, assim como a gente pode ver agora.
No fevereiro passado foi lançado, junto com outras publicações do mesmo autor ou por ele curadas, um breve tratado histórico de incontestável interesse: “A Praia da Pipa na Cartografia dos Séculos XVI e XVII” de Francisco Fernandes Marinho, erudito filho de “seu” Antonio Pequeno, ilustre poeta local. Trata-se de um livro editado em tiragem limitada pelo mesmo autor, por isso aconselho que os curiosos arranjem logo uma cópia. Eu vi umas poucas na banca da Pipa, à venda por cinco reais cada. Não percam.
Nos dois capítulos que constituem o breve tratado histórico o estudioso pipense relata a analise que fez dos documentos e mapas da costa do Nordeste brasileiro realizados nos séculos citados acima e expõe na Conclusão seu culto ponto de vista.
O professor Marinho apresenta a seqüência dos topônimos de Praia da Pipa que foram usados nos documentos antigos e acompanha a evolução do termo em tupi assim como o batismo com nome português do lugar.
O que atraiu de repente minha atenção foi a presença no mapa, publicado à página 8 do livro, de uma ilha bem junto a costa. No mapa de 1574, “Capitanias Hereditárias” de Luís Teixeira, cujo original está conservado na Biblioteca da Ajuda em Portugal, a ilha está representada na frente de Itacoatisara, a 6º ao sul do Equador.
Na página 20 do seu livro, o professor Marinho ressalta um trecho do “Roteiro Geral com largas informações de toda a Costa do Brasil” de Gabriel Soares de Sousa, 1587, onde o autor tanto usou o topônimo Itacoatigara quanto o “ponta da Pipa” afirmando que:
“Do porto de Búzios a Itacoatigara são nove léguas, e este rio se chama deste nome por estar em uma ponta dele uma pedra de feição de pipa como ilha, a que o gentio por este respeito pôs este nome, que quer dizer ponta da Pipa; mas o próprio nome do rio é Garatuí, o qual está em altura de seis graus. Entre esta ponta e o porto dos Búzios está a enseada de Tabatinga, onde também há surgidouro e [...] De Itacoatigara ao rio de Guaramataí são duas léguas...”.
Na sua conclusão o professor Marinho refere-se às duas pedras que se destacavam em toda a orla marítima da porção de terras da Praia da Pipa identificando e localizando respectivamente a Itacoatiara², a “Pedra mais bonita” ou “Pedra principal de cor amarelada”, onde agora fica a conhecida Pedra de São Sebastião, no atual ancoradouro dos barcos da região, e a Itapuiparaceitaba, a “Pedra delgada, fina, em folhedos, inclinada para o mar” como a atualmente conhecida Pedra do Moleque.
Considerando que assim como está presente no mapa de 1574 a ilha da Pipa desaparece nos mapas do século seguinte, cheguei a conclusão que também essa ilhota em forma de barril sucumbiu à erosão e sumiu. Também neste caso, no começo deve ter sido um promontório na falesia que foi com o tempo separando-se do continente até formar uma ilha, com um núcleo de rocha, bem perto da costa. A incessante erosão produzida pelo impacto das ondas acabou derrubando tudo e cancelando a ilha da Pipa de todos os mapas futuros. É assim provável que as pedras espalhadas no atual ancoradouro sejam os pedaços do coração da ilha da Pipa.
Aplicando à Itapuiparaceitaba a mesma ação da Natureza que fez desaparecer do mapa a Itacoatiara, entendemos a presença de tantas rochas espalhadas naquela ponta e enfim louvamos a Pedra do Moleque como último vestigio de um rochedo bem maior.
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¹ - Gaspar Moreira, proprietario do "Casarão", me contou que onde agora está o restaurante dele já foi a casa da avó; quando ele era criança, de um lado e do outro da casa tinha a vegetação tipica de restinga e nada mais; a praia estava à mesma altura da varanda da casa.
² - Segundo Juvandi de Souza Santos, professor de Arqueologia e História do Brasil/UEPB, no seu livro “Ocorrências de Itacoatiaras na Paraíba” publicado pela JRC Editora, o termo tupi itacoatiara (ita = pedra + kwatia = riscada) significa pedra com inscrições. No seu "Dicionário de Topônimos Brasileiros de Origem Tupi", publicado pela Traço Editora, Luis Caldas Tibiriçá simplifica, mas não esclarece: itá-cuatiara é pedra pintada. Tinha alguma inscrição rupestre na ilha da Pipa ou simplesmente se tratava das cores da falesia?
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Para ver e eventualmente fazer o download do mapa do 1574 “Capitanias Hereditárias” de Luís Teixeira com uma boa resolução da imagem clique aqui.