sexta-feira, 22 de junho de 2012

Expedição Filosófica - 15 a 19 de junho de 2012

Como sempre na noite anterior à saida de uma expedição, não consigo dormir mais que poucas horas. Quando todo mundo esta já no sono mais profundo, eu ainda me levanto de vez em quando da rede ao lembrar-me de algo importante ou nem tanto, mas que não quero esquecer de carregar comigo e vou lá ver se já coloquei o tal objeto na caixa ou saco certo. Se não tenho outras preocupações, invento até de cozinhar um feijão para levar já pronto. Quando finalmente consigo ficar quieto, na maioria dos casos o dia ameaça amanhecer a qualquer hora e os galos andam cantando nos quintais das casas vizinhas. Às 5h em ponto, enquanto acendia o fogo por baixo da água do café, apareceu Valdo para me ajudar a levar a canoa e toda a tralha à beira-rio. Para esta expedição utilizamos a canoa amarela A2. Na últimissima hora, o segundo inscrito à expedição adiou sua participação para outra vez; de qualquer forma a gente, não querendo perder a ocasião, acabou saindo apenas em dois para mais uma aventura em canoa na Natureza, remando sobre as águas do rio Piranhas/Açu, sertão do Rio Grande do Norte. Dada a ausência do segundo participante, ficou também na base IGARUANA do Sitio Araras um dos meus valiosos ajudantes, Valdo, escalado para esta expedição. Sobrou bastante serviço pra mim, afinal, mas isso também faz parte do jogo. Carregada a canoa, dei as últimas indicações úteis ao único participante da expedição e zarpamos por volta das 6h e meia. Não apenas saimos da baia abrigada onde fica o porto das canoas dos pescadores, o vento se manifestou com toda sua exuberância e logo começamos nossa aventura remando contra as forças da Natureza. Stefano, 42 anos, um italiano que mora no Brasil há alguns anos, remou pela primeira vez na vida nesta expedição IGARUANA; apesar de não ter uma boa tecnica de remada, ele conseguiu dar conta do recado igualmente, enfrentando em duas ocasiões vento contrario e altas marolas parecendo um experiente canoeiro. Céu azulão e nuvens brancas em movimento rapido, até a Itatinga fomos encarando o rio-mar pulando e deslisando de uma marola pra outra o tempo inteiro. Divertido mas cansativo: custou quase duas horas chegar até a enseada por baixo da grande pedra branca do topo da qual é possivel ter uma boa visão da região. A parada na Itatinga é praticamente obrigatoria em cada expedição. Do Sitio Araras até lá eu fico estudando cada canoa e seus tripulantes, conferindo a distribuição do peso e o comportamento das pessoas. Nesta primeira parada, eu posso distribuir diferentemente a carga se for necessario e dar alguma sugestão pro pessoal. Cada dupla de remadores precisa aprender a agir conforme sua posição na canoa. O proeiro, além de motor propulsivo, representa a visão da canoa. Ele deve enxergar eventuais obstaculos, como pedras e tocos de madeira submersos, em tempo útil para evitar uma perigosa colisão. Já quem está a popa da canoa é o jacumá: além de motor propulsivo, ele usa seu remo como leme para governar a canoa, corrigindo a rota quando for necessário e esquivando os obstaculos no meio do caminho. A parada aos pés da Itatinga é também o momento certo para um primeiro lanche energetico: frutas, castanhas, mel, rapadura. Do alto do rochedo, mostrei para Stefano a foz do afluente Carau, logo abaixo; as serras Branca e Jatoba, delineando-se no horizonte SE, e a Serra das Pinturas, na outra margem do rio. A serra de Jucurutu, distante 45km, parece uma piramide de longe. Ao voltar ao remo, o vento baixou de intensidade e seguimos sem outras paradas até as proximidades do Campo O, onde Stefano se declarou exausto e convenimos parar e arranchar. O local é perfeito como acampamento: na areia fina é facil montar todas as barracas que quiser e tem arvores suficientes para nossas redes. Stefano abraçou o mais puro estilo IGARUANA e preferiu dormir na rede ao longo de toda a expedição, deixando a barraca e toda outra parafernalia no saco estanque que foi e voltou fechado pro Sitio Araras. Dormir na rede não è pra todo mundo, pois è preciso saber deitar da forma certa para permitir o merecido descanso ao corpo. Com a lona azul e uma corda esticada entre duas arvores criamos uma cobertura por baixo da qual consumimos nossa refeição na sombra. Desde o transfer em ônibus pro sertão, Stefano propôs como temas de conversação assuntos existenciais e metafisicos. Eu aceitei o desafio e assim fomos discutindo ao longo dos dias sobre creacionismo, evolucionismo, deuses, homens e Natureza. Mas também sobre diferentes teorias de conspiração para o controle total do genero humano: massoneria, sionismo etc. Depois de cincos dias de dialogo, tudo ficou possivel e nada certo. Logo depois do pôr-do-sol, espetacular como sempre, comemos uma sopa de feijão verde e deitamos nas redes. Cansados dormimos logo. Ao raiar do dia levantei e logo percebi que durante a noite nossos mantimentos foram atacados por algum animal que comeu a melancia inteira e mastigou parcialmente duas mangas e o abacate, frutas inocente e descuidadosamente deixadas soltas perto da canoa à beira-rio. Pensei nas cabras, mas quando levantamos o acampamento e estavamos prestes a zarpar, o verdadeiro culpado, um burrinho insolente, apareceu nas pedras e ainda zombou da gente, ralhando alto seu deboche. Que filho-da-mae! Segundo dia sem vento: a superficie do rio parece um espelho escuro. Atravessamos o rio para outra margem e seguimos remando aos pés da Serra das Pinturas até aproximar-se do Sitio Mutamba. Um pescador local veio conversar com a gente e nos contou as novidades enquanto eu preparava o almoço: Zezinho foi deixado pela mulher e passa o dia bebendo; Antonio, já casado e com prole, engravidou outra mulher e foi morar com ela em Jucurutu. Depois da refeição descansamos um pouco e voltamos ao remo para chegar à grande aroeira do Campo M antes do pôr-do-sol. Por baixo dessa grande arvore frondosa já me sinto como se estivesse em casa, talvez melhor. Armamos as redes, acendi o fogo. Primeiro o café, depois o jantar: frango caipira com legumes na panela de pressao. Delicia. O Sitio Mutamba dista poucas centenas de metros, meio quilometro do nosso acampamento. Sábado à tarde. No único barzinho da vila, a galera está bebendo e "ralando o bucho" dançando forró. O barulho da farra se escuta de longe. Quando anoitece tudo para de repente e o silencio volta indisturbado. Boa noite. O amanhecer no Vale do Açu é algo que mexe dentro da gente. De repente um primeiro claror muda a noite pro dia, depois aparece o sol no horizonte e toda uma faixa do céu fica da cor do ouro, cor que tinge também a água do rio, deixando o visual inesquecivel. São momentos como este que marcam positivamente nossa vida. As 4h e meia já estou acordado. Com a maquina fotográfica na mão, vou documentando e vivenciando mais uma pura e simples maravilha da Natureza: o raiar do dia! A experiencia, contudo não seja mais uma novidade para mim, continua me emocionando bastante. Voltei ao acampamento só depois das 6h. Stefano ainda dorme na rede. Mexi nos restos da fogueira da noite anterior e com uns pedacinhos de lenha acendi o fogo sem precisar de fosforo. Quando o café ficou pronto, apareceu Josimar, agricultor local, para conversar um pouco comigo, pois já viramos amigos. A seca está braba e vai piorar, ele disse. Mesmo assim, com muita boa vontade e aquela valentia tipicamente sertaneja, Josimar levanta todo dia cedo para cortar o capim cultivado na vazante para alimentar seu gado, umas tantas vacas e uns cavalos que me olham suspeitosos por ter invadido a sombra da aroeira. Josimar perdeu quase todo o milho e o feijão plantados pela falta de chuva, mas conseguiu salvar a batata doce. Finalmente Stefano acordou e logo depois ter lhe dado as boas-vindas o agricultor voltou ao trabalho. Domingo preguiçoso: ficamos dialogando até o meiodia, enquanto o almoço lentamente cozinhava na panela de pressão. Levantado o acampamento, fomos remando pro Sul até a ilha Timbaúba. Do topo do alto penhasco, cheio de cactos espinhentos de cada cor e tamanho, mas que facilmente escalamos, podemos apreciar outra vista panoramica de extrema beleza: a serra de Jucurutu, agora mais perto, não parece mais uma piramide; o rio Garganta, afluente do Piranhas/Açu, desce sinuoso numa longa fenda que se abre ao pé da serra; ao Norte, a Serra das Pinturas mostra-nos ainda numa face dela as feridas abertas por uma mineradora em desuso ja faz tempo. Na casa de taipa que existe na ilha estão arranchados dois ou três pescadores de São Rafael que vendem o pescado na feira de Jucurutu. Conversamos um pouco com eles e depois voltamos a remar até uma ilhota pouco distante, onde escolhemos uma bonita arvore verde para almoçar na sombra dela. Depois do almoço, sem descansar muito, voltamos logo a remar para conseguir chegar na Ilha Grande de São Rafael antes do pôr-do-sol. Chegamos mesmo apenas em tempo para escolher o local certo para armar as redes antes do cair da noite. Cansado da remada, Stefano adormeceu sem nem jantar. Eu aproveitei disso para não cozinhar nada pra mim e comer pão com queijo lendo um pouco na rede antes da dormir. Acordamos cedo, mas demoramos para levantar o acampamento. Stefano encontrou no topo do morro vestigios de uma antica construção e ficou instigadissimo: estudou os alicerces com a minuciocidade do mais atento pesquisador cientifico. Quando enfim, depois de uma hora de remo também, chegamos no porto de São Rafael, o sol estava alto e o dia ja bem quente. Caminhamos até a praça da feira, que visitamos sem comprar praticamente nada, pois ainda tinhamos em abundancia os mantimentos adquiridos em Itaja no dia anterior à saida da expedição. Na hora do almoço aproveitamos da ocasião para apreciar a comida tipica da região: pra mim buchada, enquanto Stefano experimentou o bode guisado, do qual eu também provei um pedacinho. Calmamente voltamos à canoa e remamos atè o Campo E, onde encontramos a ossada de uma vaca morta. Por causa disso, os pescadores deixaram de usar por enquanto o local como rancho: algumas dezenas de metros pra frente uma aroeira nos ofereceu o lugar propicio para parar. Armamos o acampamento e sentamos nas grandes pedras na sombra da arvore continuando nossa elucubrações filosóficas até o anoitecer. Pro jantar preparei: frango caipira lentamente assado na brasa com salada muito mista. O último dia desta expedição começou chovendo um pouco, mas só para mostrar-nos depois uma série de arco-iris um mais bonito que outro! Inspirado, peguei a maquina fotográfica e fui dar uma caminhada entre as pedras a caça de boas imagens. Voltei ao acampamento quando Stefano estava começando a preocupar-se pela minha ausência. Quando o almoço, que se posso gosto de preparar logo cedo de manhã, ficou pronto carregamos toda a tralha na canoa e fomos remando sem parar até a ilha de Erivaldo, onde Stefano chegou bastante provado. Depois da refeição, ele deitou mesmo na areia onde estava sentado e dormiu mais de uma hora sem se mexer. Enquanto isso o vento Norte começou a soprar com vontade. As 3h e meia Stefano acordou e, parecendo-me que o vento começasse a diminuir de intensidade, voltamos ao remo, mas justamente quando nos afastamos da ilha o vento recomeçou a soprar com força. Lutamos contra o vento quase uma hora inteira para conseguir manter nossa rota sem arriscar virar a canoa no meio de tantas marolas desordenadas. A dois quilometros do Sitio Araras o vento baixou de vez e finalmente chegamos cansados mas alegres à base IGARUANA antes do pôr-do-sol, que admirei deitado na rede por baixo do imbuzeiro. É raro voltar de uma expedição IGARUANA sem ter aprendido algo de novo, também tendo navegado na região dezenas de vezes. O fato é que cada aventura em canoa é uma experiencia nova e diferente que inevitavelmente esconde pelo menos um aspecto surprendente e desconhecido até então. Viva a aventura!