domingo, 12 de julho de 2009

Satori em Vila Flor

A vida é o que é... e a gente precisa de vez em quando parar um momento, sentar à sombra de uma arvore e refletir sobre o caminho percorrido e as trajetórias futuras. Identificar nossas fraquezas e imprudências, com sabedoria e humildade, nos ajuda no árduo caminho da vida tanto quanto compreender idéias, raciocínios e necessidades das outras pessoas que vivem a contato com a gente; sem nenhuma analise psico-socio-cultural... só a compreensão.

Este fim de semana veio de Natal um amiguinho querido de minha filha, assim ela foi dormir na casa da mãe nesses dias.
Sábado acordei cedo e preparei o café. Botei na minha bolsa camuflada: notebook, filmadora, tripé, jaqueta impermeável e todas umas outras bugigangas; na geladeira de interessante só tinha uma meia dúzia de maças. Amarrei o tênis à bolsa, peguei meu chapéu de vaqueiro e a bengala de passeio e sai de casa.
Cabrita, nossa cadela, depois que voltei do sertão não me abandona um momento, praticamente. Durante minhas viagens eu a deixo livre aqui no jardim de casa e peço para o vigia da casa ao lado se ocupar dela. Mas ela não deve ter gostado muito de ficar sozinha ultimamente. Agora aonde eu vou, ela quer ir também... contudo eu gostaria mesmo que ficasse no jardim, cuidando do território e espantando os timbús.
Assim Cabrita me seguiu, quando desci a escada que dá na praia e comecei a caminhar pro Sul, e veio comigo. Com as calças enroladas à pescadora, o chapéu de palha e a bengala, devo ter parecido um tipo bem esquisito aos poucos banhistas que encontrei, todos de sunga e biquíni, cheirando a bronzeador.
Passei por baixo da casa de Bruno e caminhei por toda a praia dos Afogados como se estivesse passeando no meu jardim. Até a pedra do Moleque já vim muito à noite por estas bandas. Com a maré baixa, a lua ou as estrelas brilhando no céu, é um bonito passeio noturno, que faço sempre que posso com as cadelas.
Por baixo da pedra do Moleque tem muita areia nesta época e não precisa escalar a duna fofa para passar a ponta. Logo depois a atmosfera muda abruptamente. Depois da badalada praia "do Amor", com barzinhos, surfistas e gatinhas, vem a praia das Minas: frequentada só por poucos pescadores, é uma praia mais aberta e selvagem, onde o mar arrebenta na areia e nas pedras com violência. Nem pensar em tomar banho aqui. Quem nada neste mar agitado são dezenas de tartarugas, que vêm pôr seus ovos na areia da praia deserta.
Continuei caminhando e pensando em tantas coisas...
Terça passada, aos quarenta anos, Beto morreu: uma outra figura de uma Pipa que não existe quase mais foi embora; animadíssimo porta-estandarte do bloco Yahoo, seguiu a um ano de distancia o amigo Deepesh pra onde for que ambos estejam...
Minha vida dá reviravoltas imprevistas cada vez que fico um momento distraído... e quando eu dou fé, muitas vezes é como receber um soco bem forte na cara.
Mas aprendi a não ficar com raiva... aprendi a ser paciente e não ter reações inúteis, muitas vezes só apressadas e inconcludentes.
Cheguei assim caminhando por baixo do Chapadão e quando vi um casal de turistas subir a escada recortada na falésia, me perguntei: que faço? subo a falésia ou passo pelas pedras?
Não tive dúvidas: vou continuar pela praia, pensei... subir, descer, por que? A primeira passagem nas rochas foi fácil; deu para passar pro outro lado sem quase pisar nas pedras. Já no segundo rochedo, mais exposto à força das ondas, tive que seguir com o maior cuidado para não perder o equilíbrio e bater a bolsa com seu precioso conteúdo. Com a ajuda da bengala fiquei andando nas pedras maiores e secas, que resultam ser menos escorregadias.
Entre o segundo e o terceiro rochedo, corri para não ser molhado pelas ondas que iam batendo com violência, deixando apenas uma pequena porção de areia seca.
De cima de uma grande pedra, Cabrita me olhou com ar interrogativo, como pra dizer: por que estamos fazendo isso hoje?
Subi nas primeiras pedras do terceiro, último e maior rochedo da praia das Minas com a tranquilidade de quem sabe que o caminho está difícil, mas só se trata de pôr um pé atrás do outro e seguir com cuidado.
Escolhi as pedras com ponderação e fugi da fúria do mar. Quando cheguei a dobrar a ponta, estava já a uns cinco metros de altura, mas uma trilha, apenas acenada, me trouxe logo e sem perigo de volta na praia.
A partir daí só tem areia, areia e areia... até o rio de Sibaúma, quando os arrecifes do encontro das águas criam relaxantes piscinas naturais e inusitadas corredeiras, onde meninos de todas as idades ficam brincando. Comi uma maça andando.
De repente uma bicicleta passou ligeira ao meu lado, não chegando a me assustar, mas inesperada... Bora, Jack !! tá indo pra Sibaúma hoje?
È isso aì! respondi quando reconheci um surfista da Pipa, carregando seu equipamento de pesca. Beleza, mano?
A bicicleta não chegou a perder a velocidade. Ele apenas deixou de dar algumas pedaladas para permitir-nos esta breve troca de palavras e continuou pelo seu caminho.
Deixei a foz sinuosa do rio à minha esquerda e subi uma baixa duna, de onde continuei caminhando descalço até passar a ponte. Na sombra da palhoça, ao lado da porteira, descansei um pouco conversando com seu Zé, limpei os pés da areia e calcei meias e tênis.
Continuamos caminhando por mais uma meia-hora até o sítio de Jorge e chegamos em tempo para evitar o maior calor do dia.
Mesmo assim Cabrita já estava com um palmo de lingua pêndula.

Jorge está preste a inaugurar seu restaurante à beira-rio, por baixo de uma grande palhoça de carnaúba. A sua mulher-menina voltou pra casa da mãe faz alguns dias e ele está nervoso por isso. Mesmo assim me recebeu com simpatia e foi logo preparar nosso almoço: filé de badejo com alcaparras na manteiga e uma salada de batatas. Muito gostoso.
Os cachorros de Jorge, uma pitbull aparentemente mansa e um "golden retriever mignon", exilaram Cabrita por baixo de um guarda-sol de palha no gramado, de onde ela ficou me olhando apreensiva.
À tarde Jorge fez questão de mostrar-me todas as novidades e depois, sentados num banco rústico na margem do rio, ficamos trocando idéias por um pedaço.
Antes do crepúsculo subimos até a casa dele, uma palhoça menor, com um assoalho de 5m x 5m sobre uma palafita de troncos de carnaubeira.
Tomamos um café bem forte e comemos frutas e pão torrado, enquanto eu dei umas dicas quentes digitais pra ele, que comprou finalmente um computador novo.
Quando Jorge acendeu a tv, me despedi dele e desci até a grande palhoça; ali armei uma rede e deitei. Na pressa de sair de casa, de manhã, esqueci de trazer um livro comigo e assim fiquei sem nada pra ler. Acendi umas luzes e fiquei procurando por alguma revista ou um livro, mas só encontrei uma tabua da maré de 2008 do porto de Cabedelo/PB.
Voltei a apagar as luzes e, deitado na rede, tentei vislumbrar os olhinhos vermelhos dos pequenos jacarés típicos da região, que caçam à noite, mas não vi nada.
Em breve dormi.

Não senti frio nem fui aperreado pelas muriçocas. De madrugada percebi a chuva cair forte; me aboletei melhor na rede e continuei dormindo.
Às quatro e meia da manhã, quando começou a amanhecer o dia, acordei de novo e decidi me levantar. Preparei bastante café forte, com pouco açúcar, e tomei duas xícaras cheias. Estava caindo uma chuva rala e não parecia que quisesse parar.
Fui na pequena cabana entre as bananeiras e escolhi um caiaque e um remo do meu tamanho.
Fiquei na dúvida se levar comigo ou deixar a filmadora; preferi não correr riscos inúteis e fui embora assim mesmo... só com o chapéu de palha, as calças e uma camiseta...
No começo Cabrita quis seguir-me, pulando na vegetação da beirada, mas, quando entendeu que deveria mesmo nadar atrás de mim, se resignou a esperar-me, soltando uns uivos melancólicos.
Assim continuei a remontar o pequeno rio sozinho, num amanhecer preguiçoso e molhado. Remei por uns quilômetros num ritmo constante e tranquilo: o barulho das pás fendendo a água e marcando o tempo.
Cheguei à margem de um bosque e um chamado irresistível me convidou a parar e descer do caiaque...
Encostei perto de um tronco e lá amarrei a pequena embarcação. Descalço, fui andando com cuidado até uma grande arvore, que tombou de um lado e continuou crescendo com o tronco principal deitado. Caminhei no tronco, passei entre um galho e outro, até encontrar um lugar perfeito, onde sentar e ficar relativamente amparado da chuva. Aí o tempo parou e fiquei escutando as aves e os passarinhos cantarem enquanto meus pensamento fluíam leves.
Não é dificíl num momento como esse perceber si mesmo como uma partícula do universo.
Passou um tempão, que não sei quantificar. O céu continuou fechado e cinza: a chuva caindo, ora mais forte ora menos. De repente senti vontade de me levantar e voltei até o caiaque. Um bonito exemplar de garça-açu ficou me vigiando de cima de um toco. Desci o rio sem vogar... usando o remo apenas como leme.
Ainda de longe escutei a tv ligada e Jorge chamar seu funcionário: Neguinhooo! vem cá, rapaaaá!
Quando cheguei mais perto da grande palhoça à beira-rio, Cabrita me farejou e veio ao meu encontro no pequeno ancoradouro.



Nota: Satori, do japonês satoru, que significa literalmente "compreender", em termos psicológicos, está além dos confins do Eu. De um ponto de vista lógico é o vislumbrar da síntese da afirmação e da negação; em termos metafísicos é a intuição do ser como evoluir e o evoluir como ser.
O satori é o momento da iluminação na pratica do budismo zen, momento no qual a inteira experiência pessoal e cósmica é projetada num único instante, que porta à anulação consciente do sujeito, não derivada de uma renuncia ao mundo externo, mas da participação como ato puro.
Quando era adolescente, creio que foi com uns dezesseis anos ou pouco mais, li um pequeno livro de Jack Kerouac intitulado Satori in Paris, do qual agora nada me lembro senão o título mesmo.