sexta-feira, 12 de junho de 2015

Astronomia indígena: o Setestrelo


Em nossas andanças pelos sertões do Vale do Assu, acampamos muitas vezes em locais distantes, isentos da poluição luminosa das grandes cidades, e com a total visão da abobada celeste, ora iluminada pela Lua, ora cheia de estrelas brilhantes.
Tivemos, assim, o prazer de apreciar em varias ocasiões as constelações e outros astros que aparecem nessa peculiar porção de céu visível no Vale do Assu, localizado na faixa sub-equatorial do continente, em torno dos 6º Sul.
Foi a observação do céu nessas noites sertanejas que impulsionou nossa curiosidade a procurar, na modesta biblioteca à disposição, informações sobre a cosmologia indígena e a astronomia pré-cabralina.
A astronomia sul-americana é bem inferior em fertilidade científica à da América Central. Os motivos são, em resumo: a falta de uma linguagem escrita e de um sistema de numeração, que permitisse o desenvolvimento de um calendário com o qual fosse possível marcar datas e ocorrências dos fenômenos astronômicos.
A ausência de conhecimento matemático impossibilitou que se criassem as mais elementares correlações astronometricas. Por outro lado, a falta de uma escrita contribuiu para que as lendas e os mitos, ao se desenvolverem, permitissem a criação de uma cosmologia em nada inferior à de qualquer outra civilização primitiva. Todos esses mitos, sejam eles de origem greco-romana, asiática ou americana, constituíam o principio simbólico do pensamento astronômico de cada povo.
Uma das características da cosmologia brasiliana é a representação no firmamento das particularidades terrestres. Quando não são heróis e deuses, é a imagem projetada da flora e da fauna local que povoa o céu. Para exemplificar isso, baste pensar que, ao lado de Pauí Pódole (Cruzeiro do Sul), pai do mutum, estão Camaiuá e Cunavá, respectivamente as estrelas Alfa e Beta do Centauro, uma vespa e uma planta trepadeira.
Foi a necessidade de medir o tempo através da determinação do retorno das épocas de chuvas e secas, que conduziu esses astrônomos elementares a observar o movimento dos astros e relacionar o aparecimento de certas estrelas, ou constelações, com as mudanças das estações.
Mesmo não tendo conhecimento maior do universo e da mecânica celeste, não sabendo calcular matematicamente os eclipses e as orbitas dos planetas, os indígenas brasilianos criaram uma cosmologia bem desenvolvida, a que não faltam explicações pitorescas sobre a origem das fases da Lua, os cometas, os meteoros, a Via-Láctea etc.
O mais importante agrupamento estelar que caracteriza o conhecimento dos aborígenes brasilianos, é o das Plêiades. Duas são as razões desta importância: a primeira, o fato das Plêiades constituírem um dos objetos de mais fácil identificação; a segunda relaciona-se com o fato que sua aparição no céu, em Junho, antes do nascer do Sol, no lado do nascente, indicava aos índios que, nesta época, tudo começava a se renovar e que em breve chegaria a primavera.
São muitas as lendas às Pleiades, popularmente conhecidas também como Setestrelo, por ser visíveis, a olho nu, apenas sete estrelas desse aglomerado celeste.
Uma lenda Caxinauá, colhida por Capistrano de Abreu, relata a história de um irmão solteiro, Boró, que trai o irmão casado, Macari, ao brincar com a linda esposa deste, Iriqui. Desprezada pelo marido, Iriqui pede a seis araras-canindés que a conduzam ao céu. Lá chegando, Iriqui e as araras se transformam nas Plêiades.
Para os índios Taulipangue, as Plêiades formam, com o grupo das Híades, a estrela Aldebarã e uma parte de Orion,a figura do perneta Jilicavaí, que tendo tido uma das pernas decepada pela esposa adultera, subiu ao céu. Antes de sua ascensão, Jilicavaí anuncia ao irmão e ao filho que seu desaparecimento anual seria o sinal do principio da época das chuvas.
Segundo o relato do general Couto de Magalhães, que coletou a lenda entre os índios Tocantins, a jovem virgem Ceiuci era a mãe de Jurupari, cujo pai era nada menos que Coaraci, o Sol. Coaraci encontrou em Ceiuci a mãe-modelo que deveria dar à luz o índio encarregado de modificar e corrigir os defeitos e males que assolavam o Mundo e, em particular, acabar com o domínio das mulheres sobre os homens. Depois de eliminar a influencia das mulheres, Jurupari estabeleceu uma série de cultos e festas sagradas proibidas ao sexo feminino. Caso ouvissem os cantos dessas festas, as índias morreriam imediatamente. Embora soubesse deste perigo, Ceiuci desobedeceu ao filho, procurou assistir a um dos rituais e acabou morrendo por isso. Não podendo restituir-lhe a vida, Jurupari conduziu a mãe para o céu, onde ela se transformou nas Plêiades.
No Vale do Assu, interior do Nordeste, terra dos tapuios, principalmente dos grupos linguo-culturais Tarairiú e Kariri, o simbolismo das Plêiades estava estritamente ligado ao mundo invisível dos mitos ancestrais.
Assim, para os Cariris, as sete estrelas das Plêiades representavam:
1) Badzé, o pai, Padzu, deus do fumo, das florestas e do sonho;
2) Poditã, o filho, Nhú, deus da chuva, das caças, da bonança;
3) Warakidzé, o companheiro, amigo, símbolo do grupo que luta ao lado, na defesa da terra e da tribo vizinha;
4) Popó, o irmão maior, eventual substituto do pai;
5) Birae, o irmão menor, símbolo da inconstância;
6) Croroabe, o irmão gêmeo, o amigo inseparável, símbolo da união entre tribos do mesmo grupo étnico;
7) Nhinhó, o deus que deu origem aos índios Cariris.
Todos os bisamus¹ cariris colocavam seus mistérios nas Plêiades e na constelação de Orion, moradia celeste do deus Poditã, herói civilizador do grupo étnico Kariri. O mito de Poditã estava cercado de mistérios e sutilezas, que deixaram muitos intrigados, pois tinham os indígenas como regra sagrada guardar os ensinamentos do deus, conservando segredos que jamais foram revelados a quem não era do mesmo grupo étnico.
Seja os Cariris que os Tarairiús começavam a contar o ano pelo nascimento das Plêiades, que nos sertões do Vale do Assu marcava o fim do inverno, estação da chuva, e a chegada da primavera, época de renovação da flora e da fauna.
Cantos e danças faziam parte dos cultos em honra do Setestrelo realizados pelos tapuios. Eram as arcaicas festas juninas, depois sincretizadas e inseridas no calendário religioso da igreja católica.
Segundo Marcgrave, quando os frutos silvestres já estavam na maior parte maduros, os Tarairiús saiam em romaria do acampamento principal, situado nas margens do rio Otschunoch (Assu), caminhando por dois dias até as cabeceiras do rio Quoauguho (Mossoró), onde realizavam cultos de adoração ao Setestrelo durante semanas. Câmara Cascudo confirma que, em 1689, tal Lima Pacheco recebeu em sesmaria 24 leguas na ribeira do Upanema, ou Mossoró, "principiando de uma penedia que está onde o rio nasce, a qual o gentio denominava Sete Estrelas".
Quando o rio Assu voltava ao seu leito, os Tarairiús dedicavam-se ao plantio do milho, jerimum, amendoim e fava, entre outros. Antes do plantio, havia umas cerimônias realizadas pelos feiticeiros, destinadas a propiciar a fertilidade do terreno; cerimônias que Jacob Rabbi descreveu em todos os pormenores no seu famoso relatório, dedicado ao conde Mauricio de Nassau, que foi a maior fonte de noticias sobre os Tarairiús para os cronistas da época.
O aglomerado estelar das Plêiades (M45) é visível perto da constelação do Touro. Alguns desavisados podem confundi-lo com a Ursa Menor, invisível no hemisfério austral, da qual é muito menor e está muito distante. Trata-se de um agrupamento estelar relativamente jovem, na ordem dos 30-40 milhões de anos, que dista aproximadamente 450 anos-luz da Terra.
Se a olho nu são visíveis apenas sete estrelas, com um telescópio elementar é possível contar mais de duzentos astros cintilantes. Mesmo assim, pela sua ampla extensão, o Setestrelo observa-se melhor com um bom binóculo, que com um telescópio.
Mas então, dito isto... olhos pro céu e boa visão!

¹ bisamu = curandeiro, feiticeiro, autoridade espiritual, mesmo que pajé (tupi)
Bibliografia
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Bernard Pellequer: Pequeno guia do céu - 1991
Ronaldo de Freitas Mourão: Astronomia de Macunaíma - 1984
Olavo de Medeiros Filho: Índios do Assu e Seridó - 1984
João Baptista Siqueira: Os Cariris do Nordeste - 1978
Luís da Câmara Cascudo: Nomes da terra - 1968

domingo, 7 de junho de 2015